CICI: A ARTE DE VIVER O MITO

Por: Rafael Morais e Hebe Alves

Disponível em: Revista Repertório do PPCAG UFBA, ano 22, n.33, p. 209-223, 2019.2

RESUMO
Trata-se de uma perspectiva sobre a mestra da arte de narrar histórias, pesquisadora, ebome do
candomblé e apetebi do culto de Ifá, vovó Cici. Traça um panorama de sua vida como narradora
a partir da vivência com os mitos. São compartilhadas reflexões advindas da simbologia e do
contexto social, político e religioso que envolve o mito. Traz referências do contato de Cici com
o etnólogo e babalaô Pierre Fatumbi Verger e recorre a algumas referências de Hampâté Bâ. O
texto revela o olhar do artista e pesquisador Rafael Morais sobre a mestra Cici, ressaltando o valor
de uma narradora que é capaz de viver o mito em todas as suas nuances e tem domínio pleno da
arte da palavra narrada. Partilha exemplos diversos sobre o saber de tradição oral, apoiado em
reflexões a partir de vivências e processos criativos junto à Companhia Teatro Griô. Compartilha,
ainda, uma história pouco difundida da cultura afro-brasileira, pelas próprias palavras usadas pela
mestra Cici, como exemplo de sua maneira de passar ensinamentos através do mito.

Palavras-chave: Vovó Cici. Tradição oral. Arte de narrar histórias. Vivência. Mitologia afro-brasileira

 

“Cici, são apenas quatro letras!”. Assim gosta
de se apresentar a notável mestra narradora vovó Cici, conhecida no âmbito religioso como ebome Cici. Com o nome de nascimento Nancy de Souza e Silva, ela
prefere resumir toda a sua experiência de pesquisadora da cultura afro-brasileira
e africana, de sacerdotisa do candomblé, de apetebi iniciada nos cultos de Ifá,
de educadora e de escritora, simplesmente como uma contadora de histórias.
Dona Cici nasceu em 2 de novembro de 1939 no Rio de Janeiro. Sua família paterna era de Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, e seus parentes maternos de
Rocha Leão, interior do Rio de Janeiro. Sua mãe, Dulce Coelho, trabalhava como
copeira na pensão da avó Mariana Rosa da Conceição. A família do pai de Cici era
dona de uma pensão de estudantes e uma tia de Cici trabalhava na casa de uma
família alemã, de sobrenome Mayer, que morava no bairro de Santa Teresa, nos
anos de 1940, e tinha duas crianças. A tia a levava ao trabalho todos os dias e,
assim, a menina Cici passava a maior parte do tempo convivendo com as crianças
alemãs Johannes e Peter. Cici contou-me que os meninos eram um pouquinho
mais velhos que ela, mas os três eram tão unidos que não dava nem para perceber
as diferenças étnicas entre eles. Por essa razão, quando Cici chegou à escola,
já sabia falar e ler alemão, e as primeiras histórias aprendidas por ela foram de
origem alemã, histórias de tradição oral compiladas e difundidas pelos irmãos
Grimm, como João e Maria e Branca de Neve.
arte de la palabra narrada. Comparte ejemplos diversos sobre el saber de tradición oral, apoyado
en reflexiones a partir de vivencias y procesos creativos junto a la Compañía Teatro Griô. Además
presenta una historia poco difundida de la cultura afro-brasileira, en las propias palabras usadas
por la maestra Cici, como ejemplo de su manera de pasar enseñanzas a través del mito.
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Foi mais tarde, ao encontrar aquela que tinha sido a babá de seu pai, chamada
Ziza, Cici escutou a primeira história que tocou fundo em sua alma. Logo percebeu algo diferente na história narrada por aquela senhora negra. Um conto de
bicho, entremeado por uma cantiga, num idioma até então desconhecido de Cici.
Era uma história de origem congolesa, uma história afro-brasileira. Cici gosta de
narrá-la até hoje, encantando crianças e adultos.
Quando Cici tinha 18 anos, sua mãe deu à luz uma menina e, um ano e meio depois,
deu à luz a mais um menino. Então, sua mãe a chamou e lhe trouxe o seguinte
desafio: “Eu tenho que trabalhar para garantir o nosso sustento. Preciso de sua
ajuda: ou você toma conta de seus irmãos, ou eu venho dar atenção a eles e
você cuida dos negócios com a pensão”. Cici conta que preferiu cuidar das duas
crianças. Ela avalia que esse foi o seu chamado para que se tornasse a contadora
de histórias que é hoje. Constitui-se atualmente como uma verdadeira mestra da
palavra, que tem consciência do seu poder de transformação na vida das pessoas
que a escutam, em consonância com os saberes advindos das tradições orais
de matriz africana.
As tradições orais africanas criam um laço misterioso, sagrado e profundo que
liga o ser humano à palavra. Nesse contexto, portanto, a palavra é tomada como
testemunho daquilo que a pessoa é. No âmbito da tradição oral, a palavra tem
um papel fundamental no desenvolvimento da vida social; a função da memória
é valorizada e mais desenvolvida; a ligação com a palavra é mais forte; o homem
está mais comprometido com sua fala. A palavra adquire um lugar de honra. Nas
tradições orais africanas, a palavra não é utilizada de maneira imprudente, pois
é portadora de “forças misteriosas”, exerce um papel de agente mágico. Como
atesta Amadou Hampâté Bâ (1982, p. 182), “A palavra falada se empossa, além
de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem
divina e às forças ocultas nela depositadas”.
Cici dedica-se cotidianamente aos meninos e meninas atendidos pela Fundação
Pierre Verger,1
onde ela trabalha de segunda a sábado. Porém, Cici encontra disposição, apesar de seus 80 anos, para contar histórias em muitas instituições, como
universidades, teatros, museus, festas literárias, bibliotecas, escolas e terreiros, na
Bahia, em outros estados brasileiros e em diversos países. Segue adiante como
1 A fundação foi criada
por Pierre Verger em 1988,
no bairro do Engenho Velho
de Brotas, em Salvador.
Funciona na mesma casa
em que Pierre Verger viveu
durante anos, na Ladeira da
Vila América.
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uma guardiã do legado de Pierre Fatumbi Verger, etnólogo e fotógrafo francês,
babalaô muito importante para o candomblé e para a difusão e o respeito à cultura
afro-brasileira. Cici refere-se a Pierre Verger como “meu pai Fatumbi” e conta: “Se
não fosse o meu pai Fatumbi, eu não saberia o que eu sei contar hoje. A palavra
‘Fatumbi’ indica que seu portador não nasceu lá. Toda pessoa que tem no nome
iorubá a palavra ‘otum’, significa que ela não nasceu lá, que nasceu em outro lugar.
Quer dizer, ele é de lá, mas não nasceu lá. (I)Fa-(o)tum-bi. Às vezes, a gente diz
renascido para Ifá. Mas é filho de Ifá que nasceu em outro lado, em outro lugar”.
O “babalaô”, traduzido literalmente do idioma iorubá, significa o “pai do segredo”,
e é sacerdote do culto de Orumilá-Ifá, o Senhor da Adivinhação. Os babalaôs são
a autoridade máxima do culto de Ifá. Cici trabalhou como assistente de Verger,
catalogando e legendando 11 mil fotografias, convivendo com seus ensinamentos,
histórias e pesquisas. Ela guarda em sua memória, com muito carinho e gratidão,
muitos ensinamentos de sua convivência com Verger, a quem gosta de pedir a
licença e proteção, juntamente aos babalaôs, aos griôs e aos ancestrais, antes
de qualquer atividade de narração de histórias.
Narrar histórias, para Cici, não é simplesmente compartilhar informações de enredos ou puro entretenimento, mas um momento profundo de encontro com o
sagrado, de plenitude. É, antes de tudo, uma missão. Ela conhece toda a simbologia e o contexto social, político e religioso que envolve o mito. Apesar disso, a
experiência de escutar vovó Cici narrar história não é simplesmente algo didático.
É uma espécie de encantamento. Um encontro com a vivência do mito que não é
somente intelectual. O poder da história passa à frente, e tem qualquer coisa que
a mantém acima e além do cotidiano. Quando escutamos Cici contar a história,
somos tragados para a vivência das imagens da narrativa.
Quando narra histórias para pessoas de todas as idades, Cici pode abarcar de
atmosferas sutis de encantamento até a mais plena consciência crítica a respeito da vida ou da morte. Não tem receio de aprofundar nas imagens da narrativa
seus aspectos sombrios e ambíguos. Seu corpo, frágil no cotidiano, dilata-se ao
dar voz a guerreiros implacáveis ou a deusas transbordantes de sedução. Seus
movimentos precisos conseguem exprimir pavor, horror ou êxtase e a mais sublime alegria. Seu corpo, sua voz e seu olhar moldam-se como uma matéria-prima
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fluida, plenamente a serviço da expressão da história. Seu repertório é vasto, pois
reúne histórias de ensinamento, ligadas ao repertório dos babalaôs e do culto de
Ifá, histórias de orixás, histórias de bichos e histórias de espíritos encantados,
além de muitos causos compostos a partir de sua própria vivência e também dos
encontros nos quais ela continua a dialogar e aprender constantemente.
A tradição oral, segundo Hampâté Bâ (1982, p. 187), baseia-se em certa concepção da vida que pode causar estranhamento à mentalidade cartesiana, acostumada a separar tudo em categorias bem definidas, pois “A tradição africana não corta
a vida em fatias e raramente o ‘Conhecedor’ é um ‘especialista’. Na maioria das
vezes, é um ‘generalizador’” e seus conhecimentos consecutivamente beneficiam
um uso prático. A tradição oral tem a sua cadeia de transmissão, e seus elos são
os tradicionalistas, mestres e narradores tradicionais que, a depender da região
e tradições específicas, assumem diversas atribuições e maneiras particulares
de exercer sua função. Os chamados “tradicionalistas” são as testemunhas da
memória viva da África, os depositários da herança da tradição oral. Para ele, a
tradição oral é a grande escola da vida, dotada de uma palavra viva, a qual envolve
simultaneamente as crenças, as ciências, as artes, a história, as brincadeiras, o
jogo, tudo isso continuamente a nos remeter à “unidade primordial”; uma tradição,
fundada na iniciação e na experiência, que transmite conhecimentos e na qual o
espiritual e o material não estão dissociados.

Bâ afiança que a tradição não tem uma concepção abstrata que se isole da vida,
pois esta se liga ao comportamento cotidiano do homem: “ela envolve uma visão
particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um
mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se ligam e interagem”.
(BÂ, 1982, p. 183) Os “tradicionalistas” podem ser chamados por muitos nomes, a
depender da região e, consequentemente, da língua. Em bambara, são chamados
de doma ou soma, os “conhecedores”, ou donikeba, “fazedores de conhecimento”.
Já para os fulas, de silatigui, gando ou thiorinki, que, segundo Hampâté Bâ (1982),
possuem o mesmo sentido de “ onhecedor”. Cici é o que poderíamos chamar de
uma mestra conhecedora.
Sinto-me à vontade para partilhar, aqui neste texto, algumas considerações sobre a grande mestra que Cici é, recorrendo para isso à memória de testemunhos
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dados a mim num contato continuado com essa mestra junto à companhia Teatro
Griô. A partir da vivência com Cici, pela convivência e pela trilha de aprendizado
profundo na qual ela nos conduz, nessa caminhada de cumplicidade e respeito,
posso afirmar que Cici é detentora de um saber vivo. Desvenda o mundo à sua
volta e desvela o maravilhoso que existe dentro de si mesma e de seus semelhantes. A própria Cici é uma exímia pesquisadora e curiosa; consegue decifrar
os segredos das folhas, das palavras, dos nomes das pessoas, das cidades, dos
bichos, os segredos submersos nas histórias. Ao nos dar a mão numa caminhada,
seja recebendo-nos em sua casa ou entrando em nosso lar, Cici vai interpretando o mundo à nossa volta e, magicamente, nos convida a entrar em seu mundo,
por meio do seu olhar, fazendo-nos também enxergar e ler a realidade de uma
maneira diferente, como uma guia do âmbito das imagens que antes estavam
veladas, submersas, embaçadas.
Cici sabe contar as histórias das plantas, dos deuses, dos animais, dos humanos
e de outros seres viventes na natureza. Uma dessas vertentes, por exemplo, é o
conjunto de histórias por trás de cada comida oferecida aos orixás. Tive a alegria
de aprender com Cici a cozinhar essas comidas e, durante todo o processo de
preparo dos ingredientes e de cozimento dos alimentos, escutar a história de
cada uma delas, de sua origem e muitas curiosidades que me fizeram compreender melhor não somente o contexto da cultura afro-brasileira, mas a sociedade
baiana como um todo. Cici reuniu essas histórias no livro Cozinhando histórias,
editado pela Fundação Pierre Verger. Ainda pude, em muitas ocasiões, escutar
dela as histórias de inúmeras cantigas, acompanhadas das explicações dos ritmos
e do sentido por trás de cada uma delas, das danças, das roupas, penteados e
pinturas. Assim, confirmei, mais uma vez, que as histórias, além de narradas por
palavras, podem ser contempladas e lidas através de todos os nossos sentidos.
Uma experiência intraduzível é ter a oportunidade de escutar Cici decifrando
através das imagens uma fotografia, ou mesmo uma paisagem vista do carro a
caminho do teatro.
Certa vez, no processo criativo de um de nossos espetáculos da companhia
Teatro Griô, dos quais Cici integrou por algumas vezes o elenco, ela me escutou
narrar uma história que não existe publicada em nenhum livro, segundo o meu
conhecimento e dos pesquisadores com os quais mantenho constante diálogo.
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Recebi a história de presente de uma senhora de uma comunidade rural a qual
visitei, que quis demonstrar sua gratidão por ter participado de uma de minhas
oficinas da arte de narrar histórias. Aquela senhora havia escutado a história de
sua bisavó, natural do Recôncavo Baiano. Ao escutar de mim aquela história, Cici
pediu-me que não lhe desse nenhuma referência sobre o conto. Simplesmente,
pelos nomes dos personagens, pela trama, pelo estilo da narrativa, decifrou de
maneira bastante coerente a origem da história, dando uma verdadeira aula sobre
as distintas etnias que constituíram a diáspora negra em território baiano e sobre
o seu valioso legado para a nossa formação. Naquele instante, eu confirmei mais
uma vez que uma coisa é ler, escutar, estudar ou aprender uma história. Outra
coisa é viver o mito. Cici vive plenamente os mitos.
Cici é como uma espécie de museu vivo da cultura afro-brasileira e, assim como
outra importante mestra com quem tive a oportunidade de conviver e aprender
muito, a saudosa escritora e ialorixá Mãe Beata de Yemonjá, pude presenciar
serem elas reconhecidas por outros mestres conhecedores, mesmo antes de
serem apresentadas, pela sua simples presença, onde quer que vão, em restaurantes, aeroportos, teatros e centros culturais. Figuras como Cici e Beata de
Yemonjá são donas de uma presença imanente que se irradia onde quer que
estejam, mesmo longe do âmbito religioso ou artístico. Presenças que ensinam
e encantam pela convivência, pelo que simplesmente são. Pessoas donas de
uma imensa humildade e discrição que, como um imã, atraem o olhar, chamam
a nossa atenção. Sempre que estive com Beata, ou sempre que estou com Cici,
lembro de um ditado sufi: “Só é verdadeiramente seu aquilo que pode sobreviver
a um naufrágio”.
Para Cici as histórias vêm do céu e chegam até nós através dos sonhos, brincadeiras, situações da vida, livros, conversas, contemplação da natureza, das inspirações dos encantados e, principalmente, da palavra dos contadores de histórias.
Ela está sempre ensinando e aprendendo através das histórias. Aprende com
as crianças, os adultos, os outros velhos e sempre está disposta a compartilhar
aquilo que assimila.
Desde que escutei Cici pela primeira vez, fui tomado de profunda admiração. Já
faz aproximadamente duas décadas, mas o entusiasmo só cresce, o que talvez
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torne difícil apresentá-la a quem não a conhece, pois pode parecer que faço elogios na tentativa de descrevê-la. Porém, aprendi com alguns mestres de tradição
oral, dentre os quais a própria Cici, a não mentir num depoimento, a buscar uma
palavra coerente com as minhas convicções, com o que acredito.
Quando Cici me escutou narrar histórias pela primeira vez, senti-me profundamente honrado com a sua generosa escuta. E qual não foi a minha surpresa ao
ouvir seu entusiasmado retorno, visto que ela dominava, além do âmbito da tradição oral, também as diversas competências e técnicas que eu havia acabado
de utilizar na apresentação do espetáculo de narração de histórias. Cici tem um
senso crítico dos elementos da cena. Tem consciência dos recursos estéticos
do meu ofício de ator e pessoa de teatro e estabeleceu um diálogo sofisticado
sobre as escolhas de meu processo criativo a partir da apreciação estética do que
tinha acabado de assistir. Desde então, passou a ter lugar de honra não apenas
em minha plateia nas estreias, mas nos ensaios abertos e consultorias em meus
processos criativos; também, em algumas ocasiões, dividindo a cena comigo e
os demais artistas do Teatro Griô, o que, para todos nós, é um grande privilégio.
Enquanto escrevia este texto, escolhi uma das inúmeras histórias que ela já me
contou e pedi a Cici que narrasse mais uma vez para que eu pudesse compartilhar
aqui. E como um exemplo da maneira como Cici vai desfiando seus ensinamentos,
escrevi no box abaixo, com as próprias palavras que ela narrou para mim:
CICI: Na minha cultura, existe um monte de tabus. Alguns tabus
até criados pelas próprias pessoas, de não querer contar ou
cantar certas histórias. E essa história que eu gosto de contar é tabu. Eles não gostam nem de contar e nem de cantar.
Então, nem todas as pessoas de candomblé conhecem essa
história. De fato, algumas conhecem as sociedades das quais
nós vamos falar nessa história, e somente praticamente as
pessoas que participam do culto de Babá Egungun que conhecem essa cantiga que eu conto na história, porque o repertório de cantigas que se cantam no culto aos mortos são
cantigas para o espírito, não é?! Nós fazemos uma diferença
bem grande: tem o espírito e tem o corpo.
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Dentro da minha cultura, os mais velhos, diziam, do meu
tempo pra trás, que, quando alguém morria, seu espírito
ficava pela Terra por uns sete dias. Por isso, quem tem o
conhecimento e condições financeiras, a depender do seu
parente que falece naquele momento, o tempo de feitura
será equivalente aos dias de festa, e, ou então para alguém
que já faleceu, quando se fazem essas cerimônias, se cantam cantigas para o espírito daquela pessoa, depois cantamos cantigas para os orixás daquela pessoa. Porque o espírito, todo mundo sabe, é imortal.
Nem todo mundo está preparado na vida para morrer;
eu mesma não estou. Eu tenho um medo da morte, que é
uma coisa triste. E o meu destino, o odu do meu destino, é
a morte, é iku. Eu mooorro de medo. Então, as cantigas do
espírito, para que a gente se conforme com essa nova etapa da vida, é que são pouco conhecidas das pessoas. Um
exemplo é essa história e essa cantiga. Nem todo mundo
conhece. É, digamos, só um grupo de elite do candomblé,
porque eles não gostam de passar todos os conhecimentos
ou todas as coisas. Não estou falando de fundamentos, eu
estou falando de tradição, do cotidiano. Meu pai Fatumbi me
ensinou contar histórias da minha cultura; elas abrangem o
social, o político e o religioso. Dentro do candomblé, só ficou,
na realidade, o religioso.
Então, eu gosto de contar essa história e eu acho que todo
mundo tem o direito de conhecer e saber. A história, ela não
é propriedade de uma pessoa. A história é propriedade do
mundo inteiro. O mundo é uma grande mistura, e quantas
histórias que a gente conta que as pessoas se encontram
nela?! E eu tenho saído daqui, ido para outros países: eu
contar a história, ser traduzida e as pessoas ainda choram
quando eu conto a história. Viu?! E eu digo a você que são
pessoas, entre aspas, de culturas diferentes. A cultura, a
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etno, pode ser diferente, mas a temática, as coisas que se
passam são uma só: o riso, a alegria, a tristeza, a lágrima; é
para qualquer pessoa, seja ela verde, amarela, azul ou roxa,
ou lá a cor que tiver, ou a língua que ela fala: o sofrimento é
um só. Então, a gente também se emociona com as histórias dos outros, de outros grupos, de outras etnias, porque a
história tem esse dom. De fazer a gente… A história é mágica, uma história tem esse dom da gente estar aqui, mas ela é
capaz de levar a gente a ser um personagem da história que
a gente conta e, na mesma hora, a gente se transformar neles, não é?! Quando você conta uma história, quando vocês
da Companhia Teatro Griô narram uma história, fazem um
personagem, é muito interessante.
Eu lembrei hoje, de você, Tânia, Clarinha, e as outras e outros
contadores do seu grupo contando as histórias, me emocionei. Você pode fazer uma apresentação aqui antes do ano
terminar? Olha, a história, ela vai em várias bocas. A história
deixa características, não é?! Também pelas memórias.
Então, através da sensibilidade, da memória, a gente vai
guardando as situações que acontecem. Então, veja bem
na história que eu vou lhe contar, é a consciência humana. O
que é consciência humana? É quando a gente traz, de alguma forma, as histórias que a gente aprendeu com os nossos
ancestrais. Eu canso de dizer, muitos deles “não sabiam fazer
um ‘o’ com o copo”. Mas tinham a memória. A cabeça. O ori.
[Canta]: “Orixá Ori, Ori, Orixá. È de lerequè. Orixá Ori. Ori Orixá.
È de lerequè”. O primeiro orixá que nasce é ori, a cabeça. A
cabeça é o mundo do ser humano. Porque, dentro da cabeça,
cabem todas as coisas. Então, a gente, quando conta uma
história, a gente guarda o respeito aos nossos ancestrais.
E essa história que você escolheu para contar no seu trabalho do doutorado é muito interessante, a história de três
jovens que conseguem ingressar na universidade. Um vai
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para a faculdade de Direito, torna-se advogado. O outro vai
para a faculdade de Agronomia, para conhecer a terra, as
plantações, a cultura. O terceiro, ele vai para a universidade
aprender biologia, botânica, aprender o segredo das folhas.
Então, esses três jovens se formam e, finalmente, recebem
seus diplomas, os seus anéis. Então, os três jovens colocaram as suas roupas de formando, pegaram seus diplomas e
foram no lugar mais importante da comunidade. Qual é este
lugar? É a feira. É o mercado! A gente aqui chama feira, mas
na África é o mercado.
Então, eles três vão para a feira, o lugar que mais aglomeram pessoas. Então, eles foram chegando e as pessoas foram abrindo alas para eles. E todo mundo olhando com um
olhar bacana para os meninos com os seus diplomas. Eles
entram e, no final da feira, tem um graaannnde pé de iroco.
E nesse pé de iroco, existia um velho griô, e esse velho griô
fica ali contando histórias, histórias e histórias e ajudando
o povo em alguma coisa que ele possa. Então, nesse dia, os
três jovens se dirigem ao velho griô e mostram seus diplomas e dizem: “Senhor, o senhor pode nos abençoar?”. Aí o
velho olha os diplomas.
O velho pensa e os jovens fazem suas apresentações. Então,
o que se forma em Direito pega o diploma e vira para todo
aquele mundaréu de gente, todo o povo está à volta, abre o
diploma e diz: “Senhores, de hoje em diante, quando vocês
tiverem um problema, uma coisa para resolver, não precisa
procurar os adeptos do culto Ògboní, porque eu me formei
em advogado”. Então, o velhinho ouve aquilo e faz assim…
[balança a cabeça para baixo, afirmativamente]. Aí vem o
segundo. Aí vira, faz reverência ao povo e diz: “Senhores,
quando vocês estiverem doentes, não precisa mais procurar as pessoas do culto de Inlé. Porque, eu, eu também sei o
segredo das folhas. Eu também conheço os remédios”. Aí o
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velhinho olhou para ele e fez assim… [balança a cabeça para
baixo, afirmativamente]. E veio o terceiro. O terceiro fez saudações, sempre primeiramente ao velho griô e ao público.
Fez suas saudações e disse: “Senhores, quando vocês precisarem estudar a terra, não precisa mais procurar aqueles
que cultuam orixá Okô, nem Dadá Ajaká. Porque, eu, eu me
formei em Agronomia. Eu, eu estudei os segredos da terra”.
Aí o velho griô agradeceu e disse: “Vou contar uma história a
vocês”. E, então, o velho griô cantou a seguinte cantiga: “Iku
té, ilê, sarê olumbó. Olumbó, sarê ajá. Ajá, sarê okurin. Okurin,
tombé lorum”. Então, quando eles ouviram a cantiga, tomaram a bênção e abaixaram a cabeça para o velho griô e foram
embora. Porque dentro da minha cultura, às vezes, o outro
faz uma coisa e a gente não diz nada, a gente não fala nada, a
gente fica com a boca fechada, entendeu? Você não diz, você
não reprime, você não diz nada, você só canta. Entendeu?
O que foi que o griô disse? Iku té, ilê – ele disse: a morte saiu
para passear. No meio do caminho, achou uma pedra, se
sentou e ficou observando os vivos, e com seu saco bem
junto da sua perna. E observa tudo que estava se passando
naquele dia. Iku té ilê – a morte saiu de sua casa, ficou observando a vida.
Sarê olumbó – Ah, aí veio o rato. E ela tá olhando o rato
desesperado. Todo machucado, e o gato atrás. Ora, o gato
apertava o rabinho, e o bicho tentava se soltar, e ele soltava a
mão e metia as unhas nas costas do rato. E ele foi, e chegou,
e comeu o ratinho. Quando ele tá bem lambendo os bigodes.
Olumbó, sarê ajá – Nisso, veio o cachorro e matou o gato.
Na mesma hora. A morte está observando. Ele vai e mata
o gato. E quando ele está se refastelando, ê vem o homem
dono do gato e mata o cachorro.
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Ajá, sarê okurin – O dono do gato dá uma cacetada no
cachorro e mata. Porque o gato era dele. E aí a morte vê tudo
aquilo e canta: Okurim, tombé lorum – ela mata o homem,
abre o saco, coloca dentro, fecha o saco, bota nas costas e
vem andando e cantando: “Iku té, ilê, sarê olumbó. Olumbó,
sarê ajá. Ajá, sarê okurin. Okurin, tombé lorum”.
Dentro do culto do axexê, é uma das cantigas que a gente
dança para que o espírito saiba se conformar, porque são
fases. Às vezes, a gente é como um rato, que passa a ser um
gato, que também pode ser um cachorro, ou passar a ser
um homem. E a morte leva todo mundo. Rato, gato, cachorro e homem.
Temos convivido com diversos notáveis narradores dos cinco continentes, muitos deles donos de imensa técnica e carisma, mas, em minha opinião, nenhum
deles se compara a Cici. É uma pessoa especial, e eu sinto como uma dádiva da
existência poder viver no mesmo tempo que ela e usufruir de seus ensinamentos.
Num mundo de tanta intolerância, violência, rudeza e desencanto, Cici ajuda-me
a confirmar uma convicção minha de que o encantamento não morreu nos seres
humanos, mas permanece de alguma maneira adormecido, muitas vezes em
estado letárgico. Contudo, em momentos extraordinários como a oportunidade
de ouvir Cici narrar um mito, esse encantamento pode ser acordado, ativado em
cada um de nós.
Cici, antes de narrar um mito de orixá, sempre gosta de lembrar de um texto de
seu pai Fatumbi, que diz que antigamente os orixás eram homens, que se tornaram
orixás por causa de suas virtudes, e as histórias de seus feitos foram transmitidas
de geração em geração para render-lhes homenagens. Muitos homens e mulheres passaram sobre a face da Terra e foram esquecidos. E eu consigo enxergar
em Cici essa força que vem dos seus ancestrais, carregada de muitos símbolos.
Ela mesma encarna muitas virtudes, com sua missão de contadora de histórias,
numa existência digna de ser sempre lembrada, festejada e homenageada.

NOTAS: 1 A fundação foi criada por Pierre Verger em 1988, no bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador. Funciona na mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na Ladeira da Vila América.

REFERÊNCIAS
BÂ, Amadou Hampâté. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História geral da Africa, I:
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática: UNESCO, 1982.
FREGONEZE, Josmara; JESUS, Marlende; SOUZA, Nancy (Cici). Cozinhando história. Salvador:
Fundação Pierre Verger, 2015.
VERGER, Pierre. Lendas africanas dos orixás. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2019.
VERGER, Pierre. Orixás: deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Corrupio, 1981.

Rafael Morais: é doutorando, mestre e bacharel em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Pós-graduando em Mitologia Comparada à Psicologia Analítica no Instituto Junguiano da Bahia (IJBA).
Narrador, ator, encenador e professor de Teatro. Coordenador artístico da Companhia Teatro Griô.
Hebe Alves: é professora associada da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente
permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA

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